04 junho 2007

POLINEUROMIOPATIA DA DOENÇA CRÍTICA EM PACIENTES COM SARA

POLINEUROMIOPATIA DA DOENÇA CRÍTICA EM PACIENTES COM SARA
CRITICAL ILLNESS POLYNEUROPATHY AND MYOPATHY IN PATIENTS WITH ACUTE RESPIRATORY DISTRESS SYNDROME.
Crit Care Med 2005; 33:711-715.

Sven Bercker, Steffen Weber-Carstens, Maria Deja, et al.
Objetivo: Polineuropatia/miopatia do doente crítico (PNMDC) está freqüentemente descrita em pacientes severamente enfermos que sobrevivem a sepse grave. A paresia clinicamente relevante é o maior sintoma da PNMDC. Nosso alvo foi determinar fatores de risco e valores diagnósticos de testes eletrofisiológicos para PNMDC em pacientes com Síndrome da Angústia Respiratória Aguda (SARA).
Modelo: Único centro, análise retrospectiva.
Local: Hospital universitário.
Pacientes: Cinqüenta e cinco pacientes consecutivos com SARA.
Intervenções: Características dos pacientes e curso clínico foram analisados. Todos os pacientes receberam teste eletrofisiológico precocemente. PNMDC foi diagnosticada pela presença de paresia clinicamente relevante.
Principais resultados: Paresia relevante foi diagnosticada em 27 pacientes com SARA (60%), enquanto que em 18 pacientes não foi diagnosticada (controle); 5 pacientes morreram antes do diagnóstico clínico de paresia ser realizado. Pacientes com paresia eram mais idosos, ficaram mais dias em ventilação mecânica, e tiveram tempo maior de internação na unidade de terapia intensiva em comparação com os controles. Pacientes que desenvolveram paresia tiveram picos diários de glicemias elevadas durante 28 dias de tratamento em terapia intensiva: 166 (134,200) mg/dL em pacientes com PNMDC versus 144 (132,161) mg /dL em controles. Vinte e cinco de 27 pacientes com paresia apresentavam unidades de potenciais motores reduzidos, potenciais de fibrilação, e ondas pontiagudas positivas em testes eletrofisiológico precoces indicando PNMDC, ao contrário de 16 de 18 pacientes controles.
Conclusões: Em pacientes com SARA, a paresia é a complicação mais freqüentemente causada por ventilação mecânica e internação em terapia intensiva prolongada. A associação entre hiperglicemia e PNMDC tem sido encontrada. Entretanto, como esta é uma coorte retrospectiva, uma relação causal não é claramente sustentada. Neste estudo, o uso do teste eletrofisiológico precoce em pacientes com SARA teve valor diagnóstico precioso para detectar PNMDC.

COMENTÁRIOS

Entre as mais recentes descobertas no terreno do neurointensivismo, está a polineuromiopatia do doente crítico (PNMDC). As primeiras descrições são de 1983, quando Bolton descreveu alguns casos de pacientes que tinham fraqueza neuromuscular importante, associada com dificuldade de desmame respiratório e dependência prolongada de ventilação mecânica1. O nome da nova doença foi dado em 1986 pelo próprio Bolton. Desde então, mais de 150 casos foram relatados, e pesquisadores têm tentado encontrar associação com a síndrome de resposta inflamatória sistêmica (SIRS) e disfunção orgânica múltipla (SDOM).
A PNMDC é provavelmente uma patologia manifestada por uma reação inflamatória intensa do organismo, no sistema nervoso periférico, com interação entre a doença aguda que o levou à unidade de terapia intensiva (UTI) e o seu próprio sistema imune. É a principal complicação dos doentes agudamente graves com acometimento do sistema nervoso periférico, caracterizada por uma disfunção axonal predominantemente motora, com componente muscular de intensidade variável, de etiologia desconhecida, com inicio agudo depois do desenvolvimento de insuficiência respiratória aguda, no contexto de inflamação sistêmica e disfunção múltipla orgânica1,2.
Não se conhece bem os mecanismos que levam a PNMDC. Tem se pesquisado as mesmas alterações que ocorrem em outros órgãos de indivíduos com sepse. Geralmente existe uma disparidade entre a clínica e a morfologia dos nervos e músculos de pacientes com sepse e PNMDC e miopatia do paciente grave. Estudos mais recentes associaram ativação de macrófagos, neutrófilos e endotélio a anormalidades microscópicas e funcionais dos nervos periféricos. De Letter e Op de Coul demonstraram níveis aumentados de citocinas em biópsias de nervos retirados de pacientes com suspeita de PNMDC: mais de 90 % têm aumento de TNF-alfa e 100 % têm HLA-DR positivo (que é um sinal de ativação do sistema imune)3. Outras citocinas também relacionadas são: interleucina 10 (IL-10), IL-12 e moléculas de adesão (ICAM, VCAM). Assim como em outros tecidos de pacientes sépticos, há ativação de reação inflamatória em nervos e músculos.
Outra hipótese é de alterações de permeabilidade vascular da barreira hemato-neural, em fases de choque e hipoperfusão, ocorre isquemia e/ou necrose dos tecidos neurais; em fases de reperfusão (após recuperação da volemia), pode haver ativação de mecanismos de inflamação, como citocinas e radicais livres de oxigênio. Estas alterações podem levar a lesões até irreversíveis dos nervos periféricos.
A incidência ainda não está totalmente definida. Os trabalhos divergem em relação à porcentagem de doentes críticos com PNMDC - de 15 a 100 %. Esta diferença entre os trabalhos se deve provavelmente ao modo como se faz o diagnóstico de PNMDC: alguns apenas o pesquisaram em pacientes com sintomatologia após recuperação do quadro agudo de sepse, quando não se conseguia um desmame respiratório imediato e apresentava fraqueza muscular difusa; outros tentaram o diagnóstico desde o início do quadro de sepse, mesmo com o paciente sedado. Geralmente não se faz a hipótese diagnóstica de PNMDC até o paciente sair do quadro agudo de choque e insuficiência respiratória devido a necessidade de sedação. Após acordar, o paciente não consegue o desmame da prótese respiratória e apresenta fraqueza muscular generalizada. O exame neurológico não é o mais adequado quando o paciente está sedado, incapaz de se comunicar devido a tubos traqueais e cânulas de traqueostomia4. Pode ocorrer hiporreflexia profunda e diminuição simétrica de força muscular nos quatro membros. A musculatura facial e da cabeça está preservada na maioria das vezes. Há poucos sinais sensitivos, a patologia é predominantemente motora. Em relação ao prognóstico, o quadro é reversível em 50 a 100 % dos casos. Mas a morbidade é muito alta : pelo menos 2 a 3 meses são necessários para a recuperação parcial ou total e o tempo de internação hospitalar é muito prolongado5.
Recomenda-se o uso de ENMG precocemente na suspeita da doença, porque há evidencia de alterações significativas na primeira semana após o insulto agudo. Coakley relatou anormalidades em exames de eletroneuromiografia (ENM) em pacientes que estavam no CTI há mais de 7 dias e apresentavam insuficiência respiratória6. De 44 pacientes, 19 (43 %) tinham o aspecto característico de PNMDC na ENM. Mas seu estudo mesclou pacientes que receberam bloqueadores neuromusculares (BNM) e corticoterapia, que são associados por alguns autores com a PNMDC.
(...)
Ainda permanece obscura a associação de fatores de risco para PNMDC. A maior gravidade da doença aguda, a presença de SIRS/sepse e o descontrole glicêmico surgem como as etiologias mais prováveis de PNMDC. Apenas um estudo relacionou o uso de corticóides com a incidência de PNMDC11. A relação de chances foi 14,9, muito alta se comparada com outros fatores de risco encontrados pelos autores: presença de disfunções orgânicas (1,28), sexo feminino (4,6) e duração de ventilação mecânica (1,1). Vários autores discordaram fortemente desta associação entre esteróides e PNMDC21-23. Grande parte (71%) dos pacientes no estudo tinham DPOC e precisavam do hormônio como parte efetiva do tratamento. O uso de corticóide pode ter elevado a glicemia média e aumentar a freqüência de PNMDC no estudo, já que existem evidências de que o melhor controle glicêmico pode reduzir sua incidência. Bercker e colaboradores realizaram estudo retrospectivo com cinqüenta pacientes consecutivos com SARA, avaliando exame clínico neurológico e testes eletrofisiológicos precoces e comparando-os retrospectivamente. Dos pacientes incluídos no estudo as etiologias de SARA foram: pneumonia (56%), politraumatismo (20%), sepse abdominal (18%) e outras causas (6%). Foi demonstrado que em 27 dos 50 pacientes com SARA a paresia foi diagnosticada ao exame clínico da força muscular, e destes, 25 pacientes apresentaram potenciais reduzidos das unidades motoras e/ou potenciais fibrilatórios e ondas positivas. Em 18 pacientes, não foi confirmada a presença de paresia e em 16 destes pacientes, o teste eletrofisiológico foi negativo. A análise retrospectiva é uma das críticas ao estudo. Houve associação dos resultados de ENMG com a descrição do exame clínico do prontuário, o que pode ocultar algumas informações valiosas. Além disso, naquele período do estudo (1998 a 2001), não havia ainda a preocupação do controle glicêmico estrito, lançado por van den Berghe após este período24. A observação da glicemia e sua relação com a PNMDC foi interessante, mas neste estudo não se pode fazer a correlação mais precisa entre eles. Van den Berghe e colaboradores mostraram que o controle glicêmico estrito reduziu insuficiência renal, transfusões, bacteremias e polineuropatias, além da letalidade hospitalar24. A glicemia era rigidamente controlada na faixa de 70 a 110 mg/dL. Ocorreu a discussão na literatura se estes efeitos benéficos eram por causa da glicemia na faixa normal ou de efeitos antiinflamatórios da insulina. Em análise multivariada, a própria van den Berghe demonstrou que a glicemia está associada à incidência de bacteremias, polineuropatia e letalidade, embora a maior dose de insulina se correlacionou com insuficiência renal. Na análise de subgrupos, o mesmo grupo estudou os pacientes que foram submetidos a ENMG (n = 405)25. No grupo de intervenção, a glicemia era controlada até 110 mg/dL, enquanto no controle, a glicemia era tolerada até 220 mg/dL. Nos pacientes com mais de 7 dias de ventilação mecânica, o controle glicêmico reduziu a letalidade de 21 para 12%, a internação na UTI de 15 (11-28) para 14 dias (9-24) e bacteremias de 26 para 17%, todos com significância estatística. O tratamento intensivo com insulina aumentou as chances de desmame ventilatório e diminuiu as de polineuromiopatia. A terapia reduziu em 10% a incidência de ventilação prolongada (maior que 14 dias) e em 24% a ocorrência de PNMDC. Logo, a única medida que parece de extrema influência e pode ser manipulada pelos intensivistas para reduzir a incidência da neuropatia é o controle glicêmico estrito.
André Miguel Japiassú e Marta Ribeiro Alexandre
Do Vol III da série Atualização em Medicina Intensiva - Artigos Comentados
Editora Revinter

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