22 agosto 2017

Sem ordem e sem progresso: Mortalidade da Sepse nas UTIs do Brasil

"The epidemiology of sepsis in Brazilian intensive care units (Sepsis Prevalence Assessment Database, SPREAD): an observational study. Machado FR, Cavalcanti AB, Bozza FA, et al. Lancet Infect Dis 2017; online Aug 17th.

Existem poucos estudos sobre epidemiologia e fatores organizacionais de pacientes sépticos em nações com menor grau de desenvolvimento. Frequentemente aplicamos ou extrapolamos números e chances de casos e sobrevivência com base em estudos americanos ou europeus. Por exemplo, calcula-se cerca de 750.000 casos de sepse nos Estados Unidos em estudo publicado em 2001 (população com sepse entre 1996 e 2000); a população americana era de cerca de 300 milhões na época. Hoje em dia, a população americana está em torno de 400 milhões de habitantes, e extrapolamos para ~ 1 milhão de casos de sepse por ano. É difícil extrapolar para o Brasil: temos a metade da população de habitantes, mas estimamos que há maior número de casos de sepse proporcionalmente (talvez o chamado "risco Brasil").

Por isso, precisamos de estimativas nacionais, com qualidade. O estudo SPREAD foi transversal, em UTIs de todas as regiões brasileiras, com equilíbrio entre extratos populacionais de capitais e cidades interioranas, hospitais públicos e privados, tamanho das UTIs (com menos ou mais de 10 leitos). A abrangência foi de 1690 UTIs de pacientes adultos, com cerca de 19 mil leitos de UTIs.

As UTIs randomizadas para participar do estudo foram escolhidas a partir do censo de UTIs feito pela AMIB em 2010. Elas foram contactadas (N=368) e no final 277 foram incluídas. 227 UTIs enviaram dados de 2632 pacientes internados no dia do estudo nas UTIs. E 794 pacientes tinham sepse e foram acompanhados até o desfecho hospitalar.

As principais diferenças entre sobreviventes e não-sobreviventes foram:
- Menor disponibilidade de recursos (ventiladores, cateteres venosos e arteriais, bombas infusoras, etc): 66% vs 53%;
- Idade: 61 vs 68 anos;
- Choque séptico: 60% de mortalidade (lembrando que foi 65% no Sepse Brasil publicado em 2006);
- Infecções hospitalares: 61% vs 41% comunitárias
- Procedência do andar ou UTI;
- Tempo maior que 6 horas do diagnóstico da sepse até internação na UTI;
- Controle inadequado do foco: 71% mortalidade;
- Antibiótico após 1 hora ou sem aderência ao pacote de 6 horas: 62% mortalidade.

Os destaques do estudo são:
- Trabalho com georreferência: afasta o viés de seleção que houve em outros estudos com centros de estudo voluntários;
- 30% dos leitos desta amostra representativa de UTIs brasileiras estavam ocupados por pacientes com sepse;
- A mortalidade foi igual em hospitais públicos e privados; a disponibilidade de recursos e a aderência ao pacote de 6 horas foram mais determinantes para o desfecho;
- A aderência ao pacote de 6 horas é péssimo (20%) - estudo espanhol de Ferrer et al tinha 40% em 2008 e outro estudo de rede de hospitais brasileiros tinha 55% de aderência - e isso parece influenciar a chance de se viver ou não;
- Há pouca diferença de mortalidade entre pacientes com aderência a antibióticos em até 1 hora e o pacote completo de 6 horas;
- Finalmente, a incidência de infecções hospitalares foi enorme (290 por 100 mil habitantes), com 60% das sepses sendo originárias na própria UTI.

Concluindo, temos um cenário assustador para a sepse no Brasil. Independente da natureza do hospital, a escassez de recursos e a falta de aderência ao pacote de tratamento (principalmente antibioticoterapia precoce) estão associados à mortalidade de 56%. Não há ordem nos nossos hospitais para melhorar a aderência aos protocolos e a segurança do paciente. Este resultado é semelhante aos estudos de mais de 10 anos atrás (BASES e Sepse Brasil), traduzindo a falta de progresso na síndrome infecciosa que é responsável pela ocupação de 30% das UTIs brasileiras. Ou seja, sem ordem, nem progresso.

André Japiassú

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