O fim da década de 90 e início dos anos 2000 foram de ouro para a Medicina Intensiva: estudos grandes de pacientes em UTI foram publicados em revistas famosas e determinaram a próxima década de prática no campo. Reposição volêmica na sepse, controle glicêmico estrito, profilaxia de úlcera de estresse gástrico, ventilação protetora na SARA, uso de corticoide e proteína C ativada na sepse grave/choque séptico e suspensão diária de sedativos de pacientes em VM são alguns exemplos de artigos publicados entre 1994 e 2001. Uns foram reproduzidos e ditam a nossa prática no dia-a-dia, enquanto outros foram refutados e suas ideias caíram.
Desde lá, alguns grupos de pesquisa se notabilizaram por produzir novos conhecimentos, fazendo o mesmo que outras especialidades como Oncologia, Cardiologia e Infectologia. São trabalhos com tratamentos na sua maioria, do tipo estudo clínico ranzomizado e controlado, que podem ter ou não financiamento da indústria farmacêutica.
Os autores holandeses fizeram levantamento interessante de artigos de Medicina Intensiva nos principais 4 periódicos: New England Journal of Medicine, British Medical Journal, Journal of the American Medical Association e Lancet. O objetivo foi checar resultados de artigos com pacientes de UTI versus pacientes de outras áreas.
Entre 2014 e 2021, num total de 2700 publicados nestas 4 revistas em todas áreas da Medicina, tivemos 132 estudos na área de Medicina Intensiva (~5% do total). O número de pacientes (tamanho amostral) foi semelhante entre estudos de UTI versus não-UTI (média de 634 vs 584, respectivamente). O financiamento da indústria foi 7 vezes mais frequente em estudos não-UTI (apenas 5% de estudos de UTI tiveram apoio da indústria). Menos de um terço dos estudos em pacientes graves alcançaram significância estatística, bem menos que outros estudos não-UTI (29% vs 65%, p<0,001).
Ficaremos pessimistas com os estudos clínicos em UTI? Talvez sim. Hipóteses para estas diferenças:
- precisa-se de enorme número de pacientes para se demonstrar diferenças de desfechos, pricipalmente mortalidade; idade, causa primária de internação e comorbidades associadas são os principais fatores prognósticos e qualquer intervenção (seja medicamentosa ou não) precisa ser muito eficiente para melhorar desfecho...
- estudos fora da área de Medicina Intensiva são mais frequentemente patrocinados pela indústria, e é claro que isto pode influenciar os resultados; talvez os estudos de UTI são mais afeitos ao "mundo real".
Mas alguns pontos foram positivos neste trabalho: aumentaram o número de estudos com pacientes graves ao longo dos anos, pulando de 4% pata 7% de todos os estudos clínicos publicados nestas revistas; intervenções não-medicamentosas são mais estudadas em UTI (quase 10% dos estudos), o que é raro em outras áreas (como o trabalho brasileiro CHECKLIST trial do JAMA).
Ficamos com os resultados positivos que hoje em dia vigoram nas melhores UTIs: tratamento precoce da sepse, ventilação protetora na SARA, interrupção diária de sedativos nos pacientes em VM, foco em prevenção de infecções nosocomiais, dentre os principais. E também teremos consciência tranquila que os trabalhos serão publicados, sejam com resultados positivos ou negativos - o que melhora o cuidado do paciente grave na UTI.
Referência:
Kampman JM, Weiland NHS, Hermanides J, Hollmann MW, Repping S, Horn J. Randomized controlled trials in ICU in the four highest-impact General Medicine Journals. Crit Care Med 2023, vol 51, online.
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